O crime de Hiroshima, 65 anos depois
No atual debate internacional exorcizam-se como loucos os governantes do Irã e da Coréia do Norte, acusados de buscarem armas nucleares. Mas não se fala que o único país a usar tais armas – não uma, mas duas vezes; não contra alvos militares, mas populações civis – é precisamente o mais veemente nas denúncias (a foto acima foi feito de um avião americano em seguida ao bombardeio de Hiroshima). Nem Stalin, vilão dos vilões no discurso dos EUA na guerra fria, praticou tal atrocidade.
Para alguns estudiosos, as bombas atômicas contra Hiroshima e Nagasaki, há 64 anos, não foram o ato final da II Guerra Mundial, mas o primeiro da guerra fria, cuja data de nascimento pode ter sido aquele 6 de agosto. Tal questão está na raiz do debate sobre as razões invocadas para a decisão do presidente Harry Truman – controvérsia reaberta nos EUA em 2005, por causa da exposição do avião Enola Gay no Museu Aéreo-Espacial do Smithonian Institution (na foto ao lado o piloto Paul Tibbets acena ao dar partida no avião que levava a bomba Little Boy).
No projeto original dos curadores da instituição, na exposição a réplica da superfortaleza voadora B-29 que lançou a bomba em Hiroshima estaria acompanhada das imagens e informações sobre os efeitos causados pela explosão. Ante vigorosa pressão conservadora, o projeto foi drasticamente reduzido. Mas a American University de Washington decidiu fazer outra exposição, na qual exibiu a destruição que o Smithsonian, envergonhado, optou por esconder do público.
A tragédia das cidades japonesas
A campanha conservadora contra exposição questionava o patriotismo dos responsáveis pela exposição. Alegava que, por tornar desnecessária uma sangrenta invasão do Japão, a bomba poupara muitas vidas. Em 1947 Truman tinha sido específico. Falou que salvara 250 mil vidas americanas. Depois elevou o número a meio milhão. Mais tarde, um milhão. E afinal, “milhões”. Documentos militares só diziam 20 a 60 mil.
Em 1965 o professor Gar Alperovitz (foto ao lado), com base em vasta documentação, refutara (no livro Atomic Diplomacy: Hiroshima and Potsdam) a tese de que a bomba poupara vidas daquela forma. E 30 anos mais tarde constataram-se duas realidades críticas: 1. havia um abismo cada vez maior entre o que os historiadores sabiam e o que fora dito ao público; 2. poucas questões controvertidas ainda restavam.
Não se deve confundir – advertiu ele – o debate da eventual necessidade militar de se usar a bomba (para poupar vidas e apressar o fim da guerra) com a questão do ataque a Pearl Harbor ou a brutalidade dos militares japoneses – bombardeio de Shangai, saque de Nanking, prostituição forçada de mulheres coreanas, a marcha da morte de Bataan, torturas e assassinatos de prisioneiros de guerra, etc.
Se há quatro décadas a linha de raciocínio de Alperovitz era às vezes rejeitada como “revisionismo” ou “esquerdismo”, hoje existe – como chegou a escrever J. Samuel Walker, historiador-chefe da Comissão Regulamentadora Nuclear dos EUA – “o consenso de que a bomba não era necessária para evitar uma invasão do Japão e por fim à guerra em prazo relativamente curto”.
Para Walker, o exame acadêmico cuidadoso de registros, documentos e manuscritos revelados nos últimos anos “aumentou grandemente nossa compreensão sobre as razões da administração Truman para usar as bombas contra o Japão. Especialistas ainda discordam sobre certos pontos, mas questões críticas estão respondidas”. Entre elas o fato de que havia alternativas – e que Truman e seus assessores sabiam. (Leia AQUI como Alperowitz retomou o tema do primeiro livro; AQUI uma entrevista dele sobre os dois livros; e AQUI uma crítica dos que se opoem à sua posição)
Aqueles documentos devastadores
Em artigo para a revista Foreign Policy e em outro livro (The Decision to Use the Atomic Bomb) Alperovitz referiu-se há 14 anos a esse reconhecimento de que já participam – às vezes enfaticamente, mas nem sempre – até alguns historiadores ortodoxos. Robert Messer, da Universidade de Illinois, considerou certos documentos (antes secretos, mas já então liberados) “devastadores” para a idéia tradicional de que a bomba era a única maneira de evitar uma invasão.
Ao morrer, a 22 de abril de 1945, o presidente Franklin Roosevelt não tinha informado o seu vice Harry Truman sobre a existência do secretíssimo Projeto Manhattan. Só 10 dias depois o secretário da Guerra, Henry L. Stimson (na foto abaixo, entre Gromyko e Molotov em Potsdam), comunicou o fato ao novo presidente. Ao mesmo tempo, enfatizou o provável efeito decisivo da bomba na política externa. Stimson referiu-se então à arma como “a grande carta” (the master card) dos EUA no jogo diplomático.
Até então o governo americano reclamava garantias do ditador Josef Stalin (elas seriam dadas na conferência de Potsdam) de que o União Soviética declararia guerra ao Japão três meses depois da derrota alemã – consumada oficialmente a 8 de maio. Isso porque a superarma ainda não tinha sido testada quando Truman embarcou no encouraçado USS Augusta, a 8 de julho, para a cúpula de Potsdam.
Byrnes na linha dura – contra Stimson
Os americanos, que tinham decifrado os códigos japoneses, conheciam o teor das mensagens secretas trocadas pelos japoneses, nas quais ficava claro que se Washington concordasse com a permanência no trono do imperador Hirohito (o que iria acontecer após Hiroshima e Nagasaki) não haveria obstáculo à rendição. E que Hirohito já decidira intervir para por fim à guerra.
Stimson não acompanhou Truman no Augusta. Embora encarasse a bomba como master card, defendeu junto ao presidente a idéia – exposta antes pelo secretário Adjunto da Defesa John McCloy (foto ao lado), numa reunião na Casa Branca – de um plano para a rendição japonesa que combinasse a aceitação da permanência do imperador no trono com a ameaça de lançamento da bomba.
Para Stimson, era importante “uma advertência ao Japão cuidadosamente calculada” antes de se usar a bomba. Mas o secretário de Estado James Byrnes tinha maior ascendência sobre Truman, de quem fora o mentor no Senado. E era contrário a qualquer tipo de concessão aos japoneses, preferindo chamar atenção para as atrocidades deles contra prisioneiros de guerra americanos. Deixo o desdobramento desse papel de Byrnes para o próximo post.
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